“Delete” e a distopia política brasileira pós-apocalipse da ditadura com ditadorzinhos e multidões
- Grupo de FILPOL da UnB
- 5 de mar. de 2018
- 3 min de leitura
Atualizado: 6 de mar. de 2018

Gilberto Tedeia (1)
Estava eu a ouvir o podcast Decrépitos (2) dia desses, e descobri esse livro Delete, de Matheus Gamarra, vendido apenas como e-book, baratinho aliás [aqui].
O que dizer no calor da leitura que chegou ao fim, aqui e ali ajudado pelo podcast citado?
De escrita ágil, o texto tem a agilidade de um quadrinho. O fio condutor que liga suas 585 páginas faz brilhar uma ação continuada, asfixiada pela urgência de resolver e decidir algo. As peripécias que o leitor acompanha, como disse alguém no programa, lembram também um videogame.
A história se desenrola nos 2050. É ambientada no Brasil, sobretudo em SP, RJ, Tiradentes, Juiz de Fora, Manaus, Brasília, território amazônico e dá várias voltas de 360º no planeta.
A familiaridade do leitor com a referência dos espaços, que se estendem a Vaticano, Tóquio ou árabes, ajuda-nos a sentir na pele o que se segue quando colapsa o que restava de ordem contratual e o fim de toda e qualquer garantia individual.
A história começa no megacitycondomínio Barra 3 e seus vizinhos cariocas.
Tudo somado, um continuum midiático apascenta o rebanho com notícias urgentes de última hora e três alternativas a serem tecidas coletivamente: 1) as revolucionárias, cobertas com creme sabor liberdade abstrata; 2) negócios lucrativos entre gangs violentas ou não, estatais ou não; 3) a satisfação imediata e sem-barreiras das ordens concretas do soberano do pedaço, sendo (2) e (3) poderes distintos, embora passíveis daqueles acertos por baixo dos panos, claro.
Ações de várias tramas paralelas de vários pilares pressupostos, um deles é o agambiano "estado de exceção".
Se, por um lado, o destino de multidões matáveis é de quem decide o que fazer, e por outro lado, fica tudo por isso mesmo, salvo os ressentimentos ou cooptações de praxe, outro importante vetor organiza as ações: certas exigências a serem observadas, aquelas postas pelo soberano de turno a ser obedecido e satisfeito.
Os personagens dessa trama, resistências revolucionárias, guerrilhas urbanas, ditador e vice-ditador, síndico, soldados, todos se pegam e matam sem processo judicial, e quem tiver arma ou prova decidirá ali mesmo a morte e execução. Essa é a figura do nomeado por Agamben como soberano.
Quem é esse soberano? Pode ser guarnição, robô-androide, drone com inteligência artificial, operador do lança-chama de dispersar ou Caveirão de massacrar multidão, digitador na mesa de operações que decide caso-a-caso o que fazer, a lista é longa. É assim que porteiro, serviços de segurança, síndico, bibliotecária, professor ou o psicopata da vez acabam sempre a massacrarem um ou centenas.
É triste ver o que se passa num tempo sem Judiciário, nem participação, controle ou poder popular de nada sobre coisa alguma, nem mesmo sobre a própria capacidade de morrer normalmente atribuída a tudo o que respire ou sangre [estamos falando do romance, bom reforçar].
Este é o momento jurídico-administrativo que organiza as peripécias e reviravoltas dos personagens. Acompanhamos estarrecidos a gestão de populações e territórios, que se desde fins do XX já não ia bem das pernas, colapsa de vez antes dos 2040.
O que se segue quando a igualdade qualitativa entre todxs morre em desonra no Lamaçal?
Nesse inferno [modo carinhoso usado por mais de um personagem para falar do que vivem], o sonho de consumo de quase todos, escravos ou senhores do sistema, é o acesso a garrafinhas de água potável.
Movidos na luta pela água, homens matáveis suportam o roubo, a exploração, os atentados e a rapina do que resta de ativos naturais após apocalipse ambiental.
Todos tendo de lidar com a transformação de fatos em normas, da exceção em regra e terem de dar conta das ordens daquele que as colocam, tendo por meta sobreviver a quem quer que seja que vá decidir quem vive e quem morre em seu caminho.
Cabe destacar a fileira de farrapos de humanos quase androides que se matam e se esfolam graças a gerações de tecnologias de destruição em massa, recomposição de ferimentos, coleta de dados e resistência dos materiais empregados.
Apenas uma certeza: ninguém se salva, embrutecem-se todos a cada volta do parafuso.
(1) Professor de Filosofia Política da UnB, caipira paulistano da ZL e palmeirense. Texto originalmente publicado no blog do autor.
(2) A edição 149 do Decrépitos inspira aqui e ali esse texto. Sua audição é recomendável aos interessados por abordagem mais cuidadosa do romance.
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